As noites em Angola #2.20

Dia de feira!
Acordei bem disposta! Tirando o dia da enxaqueca, aqui tenho acordado sempre bem disposta. :) Mas, eu também sou pessoa que adora manhãs. Desci as escadas a correr para tomar o pequeno-almoço. Chamo à atenção da Dona Antónia que me diz: Sorriso lindo, onde vais com tanta pressa? Vou ao Roque. Ao que ouço com alguma preocupação: Tu és angolana ou tens sangue angolano! Gargalhada. E na minha mente passou a lembrança de que tenho sangue xavelha!

Avisaram-me para não levar nada que convidasse ao assalto. E assim foi. Calções de ganga, havaianas, uma t-shirt. Telemóvel no bolso esquerdo da frente. Distribuição do dinheiro pelos vários bolsos. Memorizar quanto é que cada bolso tem... e bora lá ao Roque. Eu e o Domingos.  
Se me pedissem para descrever a feira em 5 palavras e 5 apenas, usaria Confusão, Barato, Simpatia, Infernal, Indispensável. Um verdadeiro mundo numa área de um quilómetro de comprimento por 500 metros de largura e que abriga 5 mil vendedores.
Confusão. Andei quase sempre lado a lado com o Domingos. Gente... Muita gente, ou como dizem cá: pessoas, muitas pessoas! Pessoas de todos os géneros e feitios. Eu destoava na cor, não no género e feitio. Houve uma altura em que parecia que queriam me assaltar. Tocaram-me nos bolsos de trás, mas como não sentiram volume, ignoraram-me. Eu meti quase de imediato as mãos nos bolsos de trás e fiz de conta que nada estava a acontecer. Depois de ter feito algumas compras peguei no saco de plástico com os tecidos e fiz mesmo à xavelha, amarrei-o à cintura e continuei a minha exploração. O cheiro da muamba de galinha que saia das panelas ao lume, o cheiro da carne enfiada em pequenos espetos de ferro a assar contrastava com a visão dos montes de sapatos, das bolsas penduradas, da roupa no chão, da organização dos tecidos, da venda de cabelo natural e do salão de beleza ao ar livre, das camas e dos colchões, do colorido dos tupperwares, dos DVDs, CDs, televisões, aparelhagens, telemóveis, cartões SIM, cartões de recarga, os livros escolares, os boletins de jornais clandestinos, o ouro, a prata, a bugiganga. E mais uma vez comida e bebidas, latas e latas de Nido. Só estando lá para ver que no meio da confusão acaba por haver uma ordem natural nas coisas.  
Barato. Luanda é cara. Luanda para estrangeiro é cara. Luanda para quem não quer conhecer a verdadeira Luanda é cara. Na feira comprei tecidos lindos, baratíssimos. Comprei CDs de música angolana a 100kwanzas. Whisky, tabaco, televisões, sofás... tudo a preços acessíveis. Muito acessíveis mesmo.  Há lá de tudo... bem, quase tudo. Fui enganada, pois não vi tanques de guerra nem aviões. Mas, de resto, vi lá de tudo.  [Quando voltar a Lisboa e fôr ao El Corte Inglés vou me queixar! :D ]
Simpatia. Os rapazes tratam-me por madrinha. Já tenho uma data de afilhados cá. As senhoras tratam-me por filha. Na parte das especiarias trataram-me por linda. Na parte dos penteados disseram-me que tinha cabelo de preta e que sou uma branca bonita e mais...que devo ter sangue de africano, porque há algo no meu olhar e no meu sorriso que é desta terra. Eu não sei se sou desta terra, se o meu cabelo é africano, mas que este é um povo simpático, humilde e lutador, lá isso é!
Infernal. Polícias, não vi? Homens armados também não. Não assisti a assaltos, mas vi várias tentativas. Vi correrias com objectos nas mãos. Mas, para mim, as palavras continuam a doer mais que certas acções. Dizem que os da minha raça são racistas. A percepção que tenho é que os de outra raça são-no mais. Passou um grupo por mim que gritava palavras de racismo. E não era só para mim. Era também para os mulatos que estavam ali às compras. Como se a côr fosse critério para alguma coisa. Pensei na Rosa Parks e decidi que estava ali por uma razão e que iria continuar as minhas compras no meio daquele calor humano... E continuam a dizer que está frio.
Indispensável. A verdadeira alma angolana está ali tatuada num chão que é húmido dada a mistura da terra com barro, com água, com gasosa, com lixo. Os postos de venda há no chão, improvisados, com tábuas a improvisar um balcão, com folha de bananeira a fazer de tapete, com caixas de cerveja a servir de banco. Há vendedores a dormir. Estão lá desde as 5 da manhã. Um dos lados começa a fechar pelas 11 da manhã, o dos senagalenses. Dizem que são os que arranjam 'maior problema'. Para ganhar espaço queimam o lixo, ali mesmo ao pé dos candogueiros, ao pé das barracas, ao pé dos carros por lá estacionados. Ali não há só mercado ou a  lei da oferta-procura, há pessoas...eu adoro pessoas, eu sou o que sou por adorar pessoas. Adoro olhar para uma cara triste e sorrir e obter um sorriso de volta. Adoro ver uma cara sorridente. Adoro ver rugas. Adoro encontrar padrões em todos nós. E ali, no mercado do Roque Santeiro vi luta por um mundo melhor, vi sofrimento, vi pobreza, vi amor, vi simpatia, vi sorrisos, recebi beijos, vi força de viver, vi animação, vi tristeza, vi cor e dor!


Curiosidade: A Feira realiza-se de terça a domingo. À segunda-feira fazem limpezas. Chama-se Feira do Roque Santeiro porque na altura da novela brasileira, a feira parava para ver a mesma. Gostaria de ter assistido a um episódio da novela ali.  
Nota de redacção: perco mais tempo à procura de  links para a contextualização do texto do que a escrever o que me vai no coração. A net aqui é tão lenta. :( 

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